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A entrevista perdida do poeta que foi um grande líder africano: 100 anos de Amílcar Cabral

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Colonialistas não são iguais ao povo português

Ao longo da entrevista, Cabral procurou marcar a diferença entre “os colonialistas”, contra quem luta, e o povo português. Engenheiro agrónomo de formação, licenciou-se em Lisboa no Instituto Superior de Agronomia, tendo estabelecido vários contactos com vários cidadãos portugueses. George contou ao Expresso que ficou a saber que Cabral se tinha cruzado com o seu pai (arquiteto Frederico George) aquando das obras no Laboratório de Sementes do Instituto Superior de Agronomia, onde Cabral trabalhava na altura.

Caricatura de Amílcar Cabral feita por Sousa Veloso [o engenheiro que deu a cara no programa TV Rural] no livro do curso que entrou para Agronomia em 1945. Em pleno Estado Novo, Cabral tem na mão um livro de Engels, pousado sobre a terra de Cabo Verde

Caricatura de Amílcar Cabral feita por Sousa Veloso [o engenheiro que deu a cara no programa TV Rural] no livro do curso que entrou para Agronomia em 1945. Em pleno Estado Novo, Cabral tem na mão um livro de Engels, pousado sobre a terra de Cabo Verde

Ciente do descontentamento de muitos jovens em relação à guerra, Cabral aproveitou a entrevista (dada a Medeiros Ferreira e Pedro George) para enviar uma mensagem ao povo português: “Temos uma longa caminhada, juntamente com o povo de Portugal. A nossa cultura também está influenciada pela cultura portuguesa, e nós estamos prontos para aceitar os aspetos positivos da cultura dos outros. O nosso problema não é desligarmo-nos do povo português. Se porventura existisse em Portugal um regime que estivesse disposto a construir não só o futuro e o bem-estar do povo de Portugal, mas também o nosso, mas em pé da absoluta igualdade, se o Presidente da República pudesse ser de Cabo Verde, da Guiné, ou de Portugal, nós não veríamos nenhuma necessidade de fazer a luta pela independência, porque seríamos independentes num quadro humano muito mais largo e, talvez, mais eficaz do ponto de vista da história. Infelizmente não é assim, o colonialismo português explorou o nosso povo de maneira bárbara e criminosa, e quando reclamamos o nosso direito de ser gente, de sermos nós mesmos, sermos parte da Humanidade e termos a nossa própria personalidade, [surge] a repressão e a guerra colonial. Mas nós não confundimos o colonialismo com o povo de Portugal. E temos feito tudo, na medida das nossas possibilidades, para preservar as possibilidades de cooperação, amizade, socialidade e colaboração com o povo de Portugal, na independência e na igualdade de direitos.”

Denúncia de bombas de napalm

No início da década de 70 do século passado, a utilização de bombas de napalm na guerra do Vietname gerou uma onda de indignação na opinião pública mundial, depois de se saber que tinham sido usadas no longo conflito no Sudeste Asiático que vitimou mais de 3,3 milhões de pessoas e cujo termo começou com a assinatura do acordo de paz assinado em Paris, uma semana depois de Cabral ser assassinado.

Na entrevista, Cabral acusou o exército português de utilizar este armamento: “A ação dos colonialistas portugueses que nós consideramos criminosa é fundamentalmente caracterizada por bombardeamentos aéreos, em que utilizam bombas de napalm.”

Quando Cabral mencionou os colonialistas portugueses, estava a acusar a ditadura de ordenar “assaltos terroristas contra as populações da região libertada [no leste do território da Guiné], durante os quais tentaram matar o máximo de gente que podiam, matar o gado, queimar as tabancas ou as aldeias, e queimar as nossas produções agrícolas e colheitas. (…) Depois do ataque a Bissau e Bafatá, os colonialistas portugueses prenderam várias pessoas, desconfiam de tudo e de todos, e o próprio governador militar de Bissau, general Spínola, fez uma declaração a 26 de julho — se não me engano — em que ameaçou os habitantes de Bissau de uma repressão inexorável no caso de acontecer alguma coisa que perturbasse o que [ele] chama de ordem na capital e nos outros centros urbanos”.

Cabral relata ainda que tinha notícia de uma jornalista estrangeira ter perguntado ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, o que queria dizer “repressão inexorável”. “Ele respondeu que queria dizer repressão de acordo com as leis” que o líder do PAIGC classifica de fascistas.

Numa leitura atualizada das afirmações do líder africano, Pedro George diz que muitas das declarações eram “circunstanciais”, balizadas pelo momento: “Bafatá tinha acabado de ser bombardeada pelo movimento de libertação, o que indiciava que eles tinham armamento hipersofisticado, capaz de atingir a 100 ou 150 quilómetros de distância, e que controlavam as zonas rurais todas.”

Como acontece em muitos conflitos, a guerra obrigaria a uma fuga do campo para a cidade e à deslocação de populações dos dois lados do conflito. Oito anos depois do PAIGC ter iniciado a luta armada, a 23 de janeiro de 1963, Cabral constatava que “a população em Bissau praticamente triplicou ou quadruplicou, e isto mostra às populações africanas desses centros urbanos e aos próprios colonos que a sua tranquilidade já não pode ser assegurada [apesar de] no plano militar, a situação ser caracterizada por um recuo crescente das forças colonialistas para os principais centros urbanos, e um avanço progressivo das nossas forças no sentido desses centros urbanos”.

Rainha Juliana ao lado do PAIGC

Tal como acontece atualmente com a guerra da Ucrânia, muitos países europeus estavam atentos às reivindicações e à luta dos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas. No dia em que os jornais portugueses noticiaram — em pleno regime marcelista — a autoproclamação da independência da Guiné-Bissau, o vespertino “Diário de Lisboa” escrevia que o anúncio feito “pelo PAIGC será, provavelmente, objeto de consultas entre os nove países membros da Comunidade Económica Europeia e os 15 membros da Aliança Atlântica — julga saber-se de fonte holandesa geralmente bem informada. O Governo de Haia, nos últimos 15 dias, tomou várias vezes posição urbi et orbi contra a política colonial portuguesa em África. A rainha Juliana, no discurso do trono pronunciado a 18 do corrente, aludindo aos movimentos de libertação em África, declarou que a Holanda começaria a auxiliar esses movimentos em 1974, de preferência através de organizações internacionais. No mesmo dia, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Max Van Der Stoel, num memorando submetido aos Estados Gerais, quando da apresentação do orçamento, afirmou que Haia cumpriria as instruções das Nações Unidas, visando auxiliar os territórios africanos a verem realizados o seu direito a autodeterminação, tanto quanto possível por meios pacíficos”, escreve o “DL” na página 2 de 28 de setembro.

Na interpretação do coronel Matos Gomes, o paradoxo de surgirem notícias que mostravam o crescimento do isolamento português face à comunidade internacional deve-se, em parte, ao facto de “a censura ser feita por militares, e de estes saberem que era necessário manter viva a ideia do inimigo” na opinião pública, ou seja, alimentar a imagem de um regime orgulhosamente só que ia resistindo ao isolamento internacional.

Valorizar o PAIGC de Cabral era “importante, quando se fala de Spínola tinha de se falar de Amílcar Cabral” para justificar a estratégia do general português que foi governador da Guiné entre maio de 1968 e agosto de 1973: “A autoproclamação de independência foi feita num vazio de poder [no terreno]. Spínola já tinha deixado a Guiné, e [o seu sucessor] ainda não tinha entrado em funções.” A assinalar que a edição de “A Capital” [sexta-feira, 28 de setembro] que dá notícia da autoproclamação da independência, publica uma breve de três linhas informando que “o novo governador da Guiné, José Manuel Bettencourt Rodrigues, parte este fim de semana para Bissau, a fim de assumir as altas funções de que já foi empossado”.

Assembleia Nacio­nal Popular da Guiné-Bissau em Madina do Boé

Assembleia Nacio­nal Popular da Guiné-Bissau em Madina do Boé

A chegada do novo governador não travaria o curso dos acontecimentos no terreno nem a repercussão internacional do anúncio feito pelo PAIGC. Na edição de 6 de outubro, o Expresso noticiava que o então secretário-geral das Nações Unidas já tinha tomado “conhecimento” do facto através de um telegrama assinado pelo secretário-geral do PAIGC, Aristides Pereira. Três semanas depois, o Expresso titula na primeira página “Guiné-Bissau discutida nas Nações Unidas”. O texto informa que “por 88 votos a favor, sete contra e 20 abstenções foi decidido inscrever esta semana na ordem de trabalhos da Assembleia-Geral das Nações Unidas a questão da nova República da Guiné-Bissau, recentemente proclamada. Votaram contra tal inscrição e consequente debate os seguintes países: Portugal, Brasil, Grécia, África do Sul, Estados Unidos, Espanha e Bolívia”. Ou seja, quatro países com regimes ditatoriais, um país onde vigorava o apartheid (África do Sul) e os Estados Unidos, que — em plena guerra do Yom Kippur — utilizavam a Base das Lajes nos Açores como plataforma de trânsito no apoio a Israel.

A relação que o então secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, estabeleceu com o Governo de Marcello Caetano testemunha a sua opção pela diplomacia realista e pragmática, que gera consensos negociais que servem as duas partes. Portugal, país internacionalmente isolado por causa da Guerra Colonial, foi, a par dos Países Baixos — que já prometera apoio aos Movimentos de Libertação africanos para 1974 — um dos dois únicos países europeus a autorizarem o trânsito de aviões com armamento americano para Israel durante a guerra do Yom Kippur, em outubro de 1973. Dois meses depois, Kissinger veio a Lisboa reunir-se com Caetano e com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, para discutir a crise energética resultante do embargo petrolífero, política europeia, mediterrânica e africana, e renegociar o acordo da Base das Lajes.

Cabral nos sindicatos britânicos

A chave desta entrevista quase perdida de Amílcar Cabral chama-se Polly Gaster, uma ativista britânica ligada ao Comité para a Libertação de Moçambique, Angola e Guiné, “a principal organização em Londres que angariava apoios para os movimentos de libertação das colónias portuguesas”, escreve Álvaro de Miranda — irmão da historiadora e antifascista de origem goesa, Sacuntala de Miranda — num texto de memórias sobre os oposicionistas portugueses que viviam em Londres.

“Tínhamos contactos com a Polly Gaster e, no verão de 1971, ela comunicou-nos que estavam a organizar uma vinda do Amílcar Cabral a Londres. Dissemos que queríamos fazer-lhe uma entrevista para o segundo [e último] número da ‘Anticolonia­lismo’ e disponibilizámo-nos para acompanhar Amílcar Cabral nas suas deslocações e garantir a sua segurança. Optámos por fazer a entrevista com a ‘Polémica’, publicação que tinha mais projeção do que a ‘Anticolonialismo’”, conta Pedro George: “Não conhecia o José Medeiros Ferreira, mas a nossa empatia foi enorme. Ele era mais velho do que eu mas ficámos amigos para o resto da vida. Preparámos a entrevista numa sala que a Polly Gaster nos arranjou nas instalações do Trade Union Congress [federação de sindicatos] e, mais tarde, soube que o adido militar da embaixada de Portugal em Londres enviava relatórios para a PIDE — dos quais tenho cópia — com referência a toda a nossa atividade”, recorda o arquiteto: “Até enviou o esboço de uma planta do edifício onde reuníamos, com uma nota que indicava que não era feita à escala”, acrescenta.

Nesta visita ao Reino Unido em outubro de 1971, o fundador do PAIGC fez uma grande ação de diplomacia paralela, e participou “num grande comício em Westminster onde estiveram presentes cerca de 1500 pessoas” — de acordo com as memórias de Álvaro de Miranda. George lembra que também houve emigrantes portugueses na assistência em Londres, e que ele, Medeiros Ferreira e outros elementos do grupo ligado à “Anticolonia­lismo” o acompanharam a Birmingham e Manchester — onde participou em ações públicas. Esta é a história daquela que por agora é considerada a última entrevista de Amílcar Cabral, e de duas publicações quase esquecidas: o boletim “Anticolonialismo”, cujo primeiro número saiu em janeiro de 1971 e o segundo e último número em fevereiro de 1972, e a que estavam ligados “Bartolomeu Cid dos Santos, José Laranjo, Cristina Reis, José Brandão, João Monjardino”, recorda Pedro George. A “Polémica” era editada pelo grupo de oposicionistas portugueses que viviam em Genebra e de que faziam parte José Medeiros Ferreira, Maria Emília Brederode dos Santos, António Barreto, Ana Benavente e Carlos Almeida, entre outros.

Se a voz e as palavras de Amílcar Cabral nesta entrevista são importantes para conhecermos melhor o pensamento do homem de cultura que fundou o PAIGC, as imagens (também) narram a história. A fotógrafa italiana Bruna Polimeni conheceu Amílcar Cabral – e outros líderes independentistas africanos – em 1969, na conferência internacional de Cartum, onde esteve como repórter fotográfica do jornal Mondo Operaio.

Bruna voltaria a encontrar Cabral em 1970, aquando da audiência de Paulo VI aos três poetas líderes do PAIGC, MPLA e Frelimo. No ano seguinte (1971) – quando ainda se chamava Bruna Amico – fez a primeira de várias viagens às zonas da Guiné-Bissau controladas pelo PAIGC. O espólio fotográfico desta repórter que nasceu em 1934 foi preservado e, posteriormente, tratado pela Fundação Lello e Lisli Basso, contando-nos a história em imagens da luta pela independência da Guiné-Bissau.

Oiça aqui os 34 minutos de entrevista a Amílcar Cabral, em Londres, em 1971

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