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A política de fogo hoje

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As hipóteses de todo o planeta arder são mais elevadas que nunca. Aquecimento global, muito acima dos limites acordados internacionalmente, e contínua dependência da incineração massiva de matéria para produção de energia; a guerra híbrida, agora envolvendo IA, e a recentemente reacendida corrida ao armamento nuclear; a retórica inflamada que se torna imediatamente viral graças à sua difusão pelas tecnologias de informação contemporâneas são só alumes sinais de um incêndio devastador que engolirá não (apenas) o mundo, mas a própria terra, com a sua atmosfera e ecossistemas, lugares habitáveis ​​e reservas fósseis anteriormente inacessíveis.

Os incêndios florestais que assolam vários países e continentes, do Canadá a Portugal e Espanha este verão, são o antegosto dessa tendência.

Já não sentimos os efeitos transformadores e positivos do fogo, seja das chamas da tecnologia ou seja duma conflagração revolucionária capaz de instituir outro tipo de existência económica e política.

Em conjunto, a corrida recém-reacendida ao armamento global e a natureza não executável dos tratados internacionais sobre o clima equivalem a um calor abrasador desprovido de qualquer luz. As chamas contemporâneas dão a sensação decididamente apocalíptica. Isto acontece, em parte, porque as cinzas que produzem não são férteis – sufocam, em vez de nutrir, a própria possibilidade do futuro.

Os subprodutos da actividade industrial em grande escala e os resíduos nucleares são apenas dois exemplos destas cinzas mortíferas. Por mais devastadoras que fossem, as tácticas de guerra que resultaram em “terra queimada” continham ainda a promessa de um novo começo no futuro, em grande semelhança com o mito da Fénix renascida dos restos fumegantes da sua vida anterior. O “mundo arrasado” de hoje já não sustenta esta esperança.

O mundo surge como um todo precisamente quando está pronto para arder de uma só vez. E as tecnologias responsáveis ​​pelo aquecimento global, bem como as que podem resultar numa guerra termonuclear, estão a tornar esta visão aterradora do mundo finito mais nítida do que a história catastrófica das duas guerras do século XX conhecidas como “guerras mundiais”.

O fim da globalização é anunciado pelos movimentos ultranacionalistas de extrema-direita que, no entanto, mantêm entre si laços clandestinos e representam a velha e nova face do capital. Será por mero acaso que este fim contemplado e realizado hoje coincide com o potencial tecnológico para destruir o mundo como tal na sua extensão planetária, em vez de destruir os mundos separados de civilizações ou povos específicos?

Outro motivo de desespero é a política inflamatória que prevalece em configurações diversas globalmente. Por um lado, os governos tecnocratas – principalmente no Ocidente, seja qual for o significado deste termo orientacional desorientado, à luz da inclusão do Japão, da Coreia do Sul, da Austrália e da Nova Zelândia – estão praticamente resignados, dado a sua própria incapacidade de regular os incêndios da crise global. Em vez disso, dedicam-se à tarefa fútil de apagar temporariamente alguns incêndios locais, enquanto outros são ateados e outros ainda se agravam incontrolavelmente.

Apesar do seu paradigma de gestão aplicado a governação, em última análise, lidam com o que é incontrolável. Por outro lado, os populismos de direita e os neofascismos prosperam ao atiçar as chamas de todas as conflagrações imagináveis, desde o ódio ao estrangeiro até ao fogo do aquecimento global, dada a extracção e combustão irrestrita e mesmo aumentada de combustíveis fósseis.

Seja pela incapacidade ou pela falta de vontade de regular as suas intensidades, incêndios de todos os tipos imagináveis ​​​​assolam e devastam o planeta. Mais do que isso, vivemos numa época em que o fogo (ou, mais precisamente, a sua utilização) se destaca, dissipando o devaneio de que, uma vez desencadeado, pode ser facilmente controlado.

Os incêndios políticos e ecológicos parecem aterradores e avassaladores, na medida que a sua natureza elemental se revela. Talvez esta seja uma nota de rodapé final ao esforço prometeico que se baseou no desejo de controlar o fogo, em aproveitar a sua potencialidade explosiva e colocá-lo dentro de restrições espaciais, temporais, ou aquelas orientadas para um propósito definitivo.

Da máquina a vapor à fissão nuclear, a produção industrial e pós-industrial (de energia, e muito mais) goza a sua ilusão de controlo, ao mesmo tempo que gera efeitos secundários incontroláveis que vão desde a poluição atmosférica por CO2 até reações em cadeia descontroladas e resíduos nucleares não descartáveis.

O que está a mudar não é a súbita irrupção da incontrolabilidade em si, mas a consciência da mesma – embora ainda haja muita esperança de que se possam encontrar soluções tecnológicas para as crises que se multiplicam, reforçando-se mutuamente em ciclos de feedback positivo.

À luz (e no calor) da actual conflagração, é fácil sucumbir ao desespero irresistível. Mas a necessidade é a mãe da invenção, e o ponto de viragem não está assim tão longe do ponto de pura deceção, desânimo e tristeza.

Então, e se não tivéssemos de queimar nada e ainda assim obtermos energia suficiente? Uma aparente utopia, esta visão prática é crucial para a vida das plantas. Na sua relação com a energia, as plantas demonstram uma compreensão evolutiva de que é redundante queimar qualquer coisa aqui na Terra, porque o brilho diário do Sol satisfaz todas as necessidades energéticas em abundância. As plantas não repelem o fogo, mas apenas o deslocam no tempo e no espaço cósmico. A recetividade vegetal ao sol, à sua luz e ao seu calor, é uma alternativa à ignição dos incêndios (apesar do que algumas espécies de árvores, como o eucalipto, também são instigantes do fogo terrestre). Se a necessidade é a mãe da invenção, então não há necessidade de inventar nada ainda invisível ou inédito – apenas de aprender com as plantas como recalibrar a nossa relação com a energia e com o fogo.

Politicamente, as plantas não são as adoradoras absolutas do sol que parecem ser; não são os condutores da figura cosmopolítica do Uno (Deus, Rei, Estrela…). Mesmo os heliotrópios, ou as flores que seguem o movimento do sol no céu ao longo do dia, estendem-se para cima, para baixo e lateralmente ao mesmo tempo, dispersando anarquicamente o princípio por vários elementos.

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