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“A discriminação de género está profundamente enraizada; as políticas sobre saúde reprodutiva são, na maioria das vezes, criadas por homens”

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A discriminação e as desigualdades que as mulheres enfrentam na saúde resultam de fatores sociais, políticos e económicos, e manifestam-se tanto no acesso aos serviços de saúde, como na qualidade dos cuidados prestados. Vários estudos mostram que recebem frequentemente tratamentos inadequados e que os seus sintomas são muitas vezes desvalorizados pelos profissionais de saúde. Além disso, continua a haver uma sub-representação das mulheres na investigação clínica, o que tem consequências negativas para a sua saúde, explica Cynthia de Las Fuentes, psicóloga e presidente da Associação Americana de Psicologia, para quem são necessárias mudanças urgentes. “Acredito que a verdadeira emancipação política das mulheres é fundamental. Quando aumenta a participação política das mulheres, implementam-se mudanças que beneficiam toda a sociedade.”

Concluir como discriminação contra as mulheres na saúde é uma das suas prioridades. Em que situações essa discriminação é mais evidente atualmente?
Na verdade, é uma longa história. A discriminação contra as mulheres remonta aos filósofos gregos antigos. Aristóteles, por exemplo, acreditava que as mulheres eram inferiores aos homens, porque tinham os mesmos órgãos genitais externos do que eles, mas mais pequenos e virados para dentro ou invertidos. E, como esses órgãos eram ‘menores’, as mulheres seriam inferiores de alguma maneira. A única coisa considerada de valor na altura, e que era exclusiva das mulheres, era o útero. Esta visão influenciou a forma como as mulheres têm sido tratadas na medicina. Se prestarmos atenção à política nos Estados Unidos, vemos como essa mentalidade persiste. O Partido Republicano, por exemplo, criticou Kamala Harris por não ter filhos biológicos, sugerindo que isso a torna inferior.

Em termos de acesso aos cuidados de saúde, como é que esta discriminação se manifesta?
A discriminação ocorre principalmente por razões económicas. Nos países desenvolvidos, os cuidados de saúde são geralmente vistos como um direito, mas isso não é uma realidade em todos os lugares. Nos Estados Unidos, por exemplo, não há acesso universal garantido e só quem tem um emprego que preencha certos critérios tem acesso a seguros de saúde. Isto coloca as mulheres em desvantagem, já que muitas têm empregos a meio-tempo, que não dão direito a seguro de saúde. Enfrentam, por isso, uma carga financeira muito maior no que diz respeito a cuidados de saúde. Além disso, em muitos países, as pessoas mais pobres são, na maioria das vezes, mulheres com filhos, que têm menos probabilidade de ter acesso a médicos locais ou a profissionais de saúde nas suas comunidades.

Em Portugal, o acesso à interrupção voluntária da gravidez é difícil. A lei não está a ser aplicada como deveria, muitos hospitais públicos recusam-se a realizar o procedimento e ainda há vergonha, silêncio e estigma. Como vê esta situação?
Seja em Portugal ou noutra parte do mundo, a discriminação de género está profundamente enraizada. As leis e políticas sobre saúde reprodutiva são, na maioria das vezes, criadas por homens. Se recuarmos novamente até Aristóteles, ou mesmo antes, percebemos que a única coisa que os homens sempre procuraram controlar foi a sobrevivência dos seus genes, e fizeram-no através do controlo das mulheres, da sua fertilidade e dos seus direitos reprodutivos. Nos dias de hoje, essa mentalidade continua presente: suprimir a capacidade das mulheres de se emanciparem política, económica e legalmente para decidirem sobre os seus corpos é considerado uma prioridade. Quando os direitos reprodutivos são restringidos, a probabilidade de as mulheres morrerem ou ficarem incapacitadas aumenta drasticamente. Globalmente, a taxa de mortalidade materna é de 190 por 100.000 gravidezes, mas nos países mais pobres, esse número sobe para 1 em cada 45. Isto é o resultado de políticas, leis e barreiras culturais que impedem as mulheres de terem o controlo sobre as suas vidas e os seus corpos.

Diversos estudos mostram que as mulheres frequentemente recebem tratamentos inadequados e que os seus sintomas são muitas vezes desvalorizados pelos profissionais de saúde. Também no tratamento há discriminação?
Sim, há. Por exemplo, os prestadores de cuidados de saúde muitas vezes falham no tratamento da dor, especialmente da dor crónica em mulheres. Elas têm mais probabilidade de receber analgésicos de venda livre ou tranquilizantes, sendo raramente encaminhadas para investigações aprofundadas, ao contrário dos homens. A dor das mulheres é frequentemente vista como emocional ou psicológica, em vez de ser tratada como uma dor física. Se uma mulher sofre de dor crónica, é comum que o médico a interprete como uma questão psicológica e a encaminhe para um profissional de saúde mental. Se este também partilhar dos mesmos preconceitos, ela pode acabar por receber estratégias cognitivo-comportamentais para gerir a perceção da dor, em vez de tratamento para a causa real.

Além disso, existe a perceção errada de que as mulheres, especialmente as de cor, exageram nos pedidos de medicação para dor, como opiáceos, levando os médicos a acreditar que estão a simular sintomas. Este preconceito pode ser fatal. Dou o meu exemplo: parti o tornozelo há alguns anos e, nas urgências, apesar da dor intensa, foi-me negada medicação para a dor e apenas me recomendaram paracetamol, presumindo que eu procurava opioides para satisfazer um problema de dependência. Mesmo após a radiografia confirmar a fratura, o médico não acreditou no nível de dor que descrevi, provavelmente por ser uma mulher de cor.

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