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San Sebastián 2024 foi de bom nível e ficará para a história como o festival de “Tardes de Soledad”, de Albert Serra

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Ao longo destes últimos 18 anos em que vincou a sua singularidade no cinema contemporâneo, o catalão Albert Serra abordou com frequência ideias ou personalidades (Casanova, Luís XIV…) que representaram momentos de profunda mudança na história da Humanidade. Nunca trabalhou diretamente no documentário, com os seus utensílios comuns. Preferiu sempre a ficção. Supostamente, “Tardes de Soledad” apresentou-se ao mundo em San Sebastián como um documentário sobre a tauromaquia. Foi o primeiro filme de Serra a ter estreia mundial em Espanha, por vontade do próprio. Mas será mesmo um documentário sobre a tauromaquia? Ou uma ficção sobre a sua inspiração, a sua transcendência?

A tauromaquia, com tudo o que tem de expressividade e beleza, nos seus rituais, no seu fascínio pela morte, na sua relação com a arte, de Goya a Picasso, de Lorca a Hemingway, a tauromaquia na barbárie do seu espetáculo, está cada vez mais isolada, “porque a sociedade”, como Serra nos contou, “está a ir noutra direção.” Devemos pois encarar “Tardes de Soledad” como outro filme de Serra sobre o fim de um tempo? Antecede também ele uma transformação?

“Há uma frase que se ouve neste filme e que para mim o resume”, contou também Serra em entrevista: “A vida não vale nada. Ou seja, a conservação da vida, só por si, para nada serve, há que utilizá-la para fazer algo que lhe dê valor. A vida, só por si, nunca é um fim em si mesma. Esta ideia absorveu-me, atormentou-me. Está muito ligada ao mundo dos touros.”

Ao dito mundo, teve Serra um acesso privilegiado graças ao apoio concedido pelo matador peruano Andrés Roca Rey (um astro em ascensão da tauromaquia na era pós-José Tomás) e por toda a sua ‘cuadrilla’ sem exceção (espadachimbandarilheiros, picadores, etc.) Mas a qualidade única de “Tardes de Soledad” não vem do acesso privilegiado. Vem de uma proximidade que o artista catalão encontrou a um nível puramente cinematográfico. É isto que o torna excecional.

Albert Serra esta semana, em San Sebastián

Serra deu uso, e com uma eficácia capital, a técnicas que tem vindo a apurar ao longo destes últimos 18 anos nas ficções, isto é: rodagem em continuidade, com três câmaras em simultâneo que tentam ser ‘invisíveis’; uso de microfones emissores, cada vez mais sofisticados, ligados por wifi e com autonomia superior a cinco horas sem recarga (algo que não existia há mais de dois ou três anos, o que coloca esta obra na vanguarda do alta tecnologia).

Entre as temporadas de 2022 e 2023, Serra seguiu várias corridas de Roca Rey em quatro praças espanholas — Las Ventas em Madrid, a Maestranza de Sevilha, Bilbao e Santander — acompanhando as faenas com teleobjetivas e microfones emissores nas jaquetas do matador e seus bandarilheiros. Touro e toureiros estão frequentemente em grande plano e são filmados com a mesma dignidade.

No filme, Roca Rey é colhido três vezes (numa delas, muito grave, em Santander, é salvo por Cayetano Rivera). No filme, as lides acabam como têm que acabar, com a morte que “Tardes de Soledad” encara de frente (mas nunca com o mesmo ponto de vista de um animal para outro). A montagem não trabalha cronologicamente esta matéria (a primeira faena não aconteceu necessariamente antes da última). Mas é magistral o resultado dramático. Constrói uma narrativa sem heróis nem heroísmos. Apercebemo-nos tanto dos sussurros do animal e das chamadas de Roca Rey, como dos conselhos da ‘cuadrilla’ ao matador e os elogios de motivação que lhe fazem, dentro e fora da arena. Nunca tal foi visto, nunca tal foi ouvido pelo comum dos mortais, na história do toureio e na história do cinema.

“Tardes de Soledad” é um filme ímpar em que tudo pode acontecer. É o filme de todas as solidões: a do touro, a do toureiro, a do espectador. Porque nos atrai tamanha beleza e tamanha monstruosidade? Que atavismo bestial é este, tão velho como a origem dos tempos? “Tardes de Soledad” é um feitiço. Impõe a sua beleza e a sua tragédia. Trabalha os paradoxos tremendos de uma atividade profissional muito séria. E fá-lo pelas armas do cinema, sem retirar argumentos a aficionados e a autitaurinos. É extraordinário o seu efeito. Provocará fatalmente as reflexões mais desiguais nos dois lados da trincheira. É o monumental filme da tauromaquia de todos os tempos.

E DEPOIS VIERAM TODOS OS OUTROS…

Para além de “Tardes de Soledad”, que marcou um antes e um depois nesta 72ª edição, o festival de San Sebastián, que termina este sábado, teve tudo no sítio certo. O rosto de Cate Blanchett estava impresso no poster e a atriz australiana foi galardoada com o Prémio Donostia. Logo lhe seguiu Javier Bardem, acostumado de há mais de 30 anos do maior festival da península, e que também foi homenageado com a mesma distinção, mas no ano passado — acontece que o espanhol, em solidariedade com a greve dos atores, também fez greve de prémios há um ano. E só agora recolheu o que já era seu, para felicidade do público, que acorreu uma vez mais em grande número.

Os trunfos de popularidade do festival não acabaram aqui. Ajudou, claro, a visita de Johnny Depp ao País Basco, onde mostrou em estreia mundial a sua nova investida na realização. Filme biográfico sobre três dias da vida do pintor italiano Modigliani, “Modi — Three Days on the Wing of Madness” é uma daquelas trapalhadas sem tino que só queremos ver porque foi Depp que a fez, nesta sua aura atual, que é de estrela cadente.

Por fim, também Almodóvar, recém-coroado em Veneza com o Leão de Ouro (repetindo a proeza de Luis Buñuel), veio a San Sebastián receber o Prémio Donostia à carreira, na estreia ibérica do muito conseguido “The Room Next Door”, o seu primeiro filme em inglês, com Julianne Moore e Tilda Swinton.

Noémie Merlant em Hong Kong sem filme de Audrey Diwan, “Emmanuele”

O aspeto mais surpreendente do título que inaugurou o concurso basco, “Emmanuelle” (é uma nova versão do livro de Emmanuelle Arsan, muito distante da obra cinematográfica da década de 70) é que, ao contrário do que se esperava, não se trata de um filme erótico (ou alinhado com esses cânones), antes pelo contrário: o que Audrey Diwan (autora de “O Acontecimento”) explora é o esgotamento do desejo numa sociedade atual que banalizou o erotismo. Tal como ele se vê na nova obra, o erotismo confunde-se com uma fachada publicitária. E há que falar dela. Por aí sim, o filme é controverso e coloca problemas (foi bastante criticado, mas não pelos argumentos mais certeiros). Deixemo-lo em pausa já que a estreia nas salas está para muito breve.

François Ozon reencontrou-se com o seu melhor em “Quand vient l’automne”, o mais chabroliano de todos os seus trabalhos, inesperado, também, porque Hélène Vincent, que já dobrou a casa dos 80 anos, é uma protagonista notável, forte candidata ao prémio de interpretação. O outono do título é o da velhice da personagem central, Michelle, refugiada na província francesa. A filha (Ludivine Sagnier), que vive em Paris, trata-a pessimamente, mal a deixa ver o neto. Mas a idosa não é de queixumes.

Uma história de cogumelos venenosos no início abre o filme a toxicidades maiores. Michelle foi prostituta no passado, profissão que sempre respeitou com a maior honradez. Mas o relacionamento dos seus familiares com essa ‘herança’ é tenso e ambíguo. Há muitas sombras neste filme de Ozon que repele preconceitos e moralismos, há crimes que vão passar incólumes, personagens que se vão escapar da Lei porque talvez nem mereçam o seu julgamento, num puzzle que cada espectador terá que montar de acordo com a sua própria consciência (e é aqui que se considera o filme devedor de Chabrol e, para ir mais longe, de Hitchcock).

François Ozon em San Sebastián na apresentação de “Quando chega o outono”

Já o veterano Kiyoshi Kurosawa, que tal como Ozon filma a velocidade de cruzeiro, mostrou no País Basco a sua terceira longa-metragem do ano (!) após “Chime” (exibido em Berlim) e “Cloud” (em Veneza). “Serpent’s Path” é um refazer do seu próprio filme homónimo de 1998, mas desta vez rodado em Paris, e em francês, com Damien Bonnard, Mathieu Amalric, Grégoire Colin, Vimala Pons e a japonesa Kô Shibasaki na pele da “serpente” do título, mulher que a todos vai manipular num descabelado thriller de vingança contra uma rede de tráfico e prostituição infantil.

Há um momento em que as personagens de Damien Bonnard e Kô Shibasaki têm um cadáver na mala de um carro estacionado em local proibido. Um polícia prepara-se para passar a multa, teme-se a revista ao carro. Mas nisto Kô Shibasaki dá a cara e, ao ver o passaporte japonês dela, o polícia muda de assunto, confessando a sua paixão pela animação Manga. Este momento é um sinal enviado ao espectador. “Serpent’s Path” está tão mergulhado na psique do repórter que quer vingar a morte da filha que todos os traços de verosimilhança são postos em causa. O filme é obcecado e excessivo como os séries B de Kiyoshi dos anos 90. Agradará aos espectadores familiarizados com o seu sistema estético, todos os outros sentirão desconforto.

Os filmes de Ozon e de Kurosawa vão muito além do valor das suas interpretações, coisa que já não se poderá dizer de “Conclave”, de Edward Berger. Aqui, Ralph Fiennes é o cardeal decano que dirige a eleição de um novo sumo pontífice no Vaticano, está impecável no papel, e outra coisa não se esperava – mas esta ‘guerra de bastidores’ do autor do multipremiado “A Oeste Nada de Novo” resultou num filme liso, esquemático no seu desenvolvimento dramático, permeável ao politicamente correto. E contudo, quem sabe aonde pode chegar Fiennes com esta interpretação.

Pamela Anderson em “The Last Showgirl”, de Gia Coppola

O caso do novo trabalho de Gia Coppola, “The Last Showgirl”, é mais sofrido porque a neta de Francis Ford desperdiçou um excelente filme em potência. Pamela Anderson, a popular atriz da série “Marés Vivas”, interpreta à beira dos 60 anos uma bailarina de cabaret de um casino de Las Vegas que decide interromper um espetáculo que está em cena há décadas, arrastando toda a trupe para o desemprego.

É óbvio que o combate pela sobrevivência de Shelley – assim se chama a personagem de Pamela Anderson – também se desenrola contra a objetificação feminina que a atriz representou na TV americana dos anos 80 e 90. E ela está bem secundada por Dave Bautista ou Jamie Lee Curtis. Mas o filme não é convicto a explorar esta dupla imagem entre personagem e atriz, nem a abordar as múltiplas temáticas que tem ao dispor: envelhecimento, precariedade, perda de dignidade de um espetáculo prestes a ser cancelado porque já quase ninguém o quer ver…

Falta argumento e rasgo na realização que arranque esta história da comiseração e eleve as personagens a outro patamar, como acontecia no cinema crepuscular de um Bogdanovich, em filmes como “…All the Marbles”, de Robert Aldrich, ou no mais recente “Tournée”, de Amalric. Sean Baker também se intromete involuntariamente nesta equação já que a maior parte dos seus heróis são perdedorescomo Shelley. Mas Gia Coppola não chegou ainda ao mesmo nível.

Marianne Jean-Baptiste em “Hard Truths”, de Mike Leigh

E os veteranos? Não defraudaram, longe disso. O novo filme de Mike Leigh, “Hard Truths”, é uma vez mais um grande trabalho de depuração gerado pela exigência dos ensaios (e é dos ensaios com os atores que o argumento sempre floresce), um filme que causou perplexidade porque este drama doméstico dos subúrbios de Londres quase podia ser encenado (e Leigh é também um admirável encenador), de tal forma a história privilegia as cenas de interiores e o que se passa dentro do apartamento da protagonista.

Pansy (Marianne Jean-Baptiste, que foi inesquecível em “Segredos e Mentiras”) é uma mulher de meia-idade, irascível face ao silêncio do marido e à apatia do filho, que mal se atrevem a levantar um dedo. Na rua, não poupa médicos nem empregados de supermercado. É intolerante a quase tudo o que a rodeia. A sua infelicidade tem uma origem obscura. É uma figura plena de tragicomédia, como a vida, tantas vezes trágica e cómica ao mesmo tempo — e Leigh é um mestre a sintonizar estas frequências.

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