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O crime impune passeou por Lisboa no dia 29 de setembro

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O Código Penal é claro. Participar em organizações ou atos que promovam a segregação ou atos de violência contra indivíduos ou grupos em função da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem ou religião é punível com pena de prisão de um a oito anos. A difamação e injúria de pessoas ou grupos em função das mesmas condições é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

A manifestação promovida pelo Chega no dia 29 de setembro é, pois, um caso, a meu ver inequívoco, de instanciação destes crimes. A atividade intensa de alguns deputados do Chega nas redes sociais, com principal destaque para Pedro Frazão e Rita Matias, tem todas as características que cabem, salvo melhor opinião, na definição destes crimes. Não estamos no domínio da simples opinião ou da liberdade de expressão. Estamos no enquadramento cristalino da definição destes crimes inscrita no Código Penal.

Apesar de todas as evidências sobre o registo de criminalidade, que mostram que não há correlações tangíveis entre o aumento dos crimes e a imigração nem entre as percentagens de imigrantes nos territórios e a criminalidade, que evidenciam que os imigrantes não estão a “consumir” apoios sociais, mas são contribuintes importantes para a Segurança Social e para a sua sustentabilidade, a mentira descarada sobre os imigrantes continua. As contraevidências ao discurso do Chega e de André Ventura são abudantes (sistematizadas, com grande mérito, no livro do jornalista André Carvalho Ramos “A Última Fronteira” cuja leitura recomendo), mas a verdade não interessa a este partido nem aos seus seguidores. O que lhe interessa é identificar inimigos, espalhar o medo, encontrar culpados para as desigualdades, esboroar a democracia, atacar as instituições democráticas, fazer tudo o que sabemos que foram, ao longo da história, e são hoje ingredientes dos ataques à liberdade e promoção do autoritarismo.

Nada disto é novo. Os fact-checks desmentem a histeria dos deputados do Chega, mas isso é-lhes irrelevante, porque mentem sobre os fact-checks como mentem sobre os imigrantes. A racionalidade inerente à argumentação séria e à verdade é-lhes estranha e por eles desprezada. Importam para o debate português as falsidades dos seus congéneres autoritaristas espalhados pelo mundo, por vezes em plágio ou decalque integral.

O que não pode ser novo é o silêncio dos órgãos de soberania sobre crimes desta dimensão. Onde para o Ministério Público? Onde para o Presidente Carlos Moedas, que terá autorizado um desfile criminoso? Onde para o Governo, onde estão as Ministras da Administração Interna e da Justiça quando um crime é perpetrado em espaço aberto? Onde está a tenacidade do Primeiro-Ministro, tão assertivo sobre os incendiários mas tão calado perante isto tudo? Onde está a verve comentadora do Presidente da República para, com a sua reconhecida capacidade didática, explicar a todos os portugueses que há crimes a ser cometido por esta gente? Porque estão as forças de segurança a garantir que uma manifestação criminosa acontece pacificamente em vez de promover o respeito pela legislação que identifica estes atos como crimes?

A André Ventura e aos seus deputados cai a máscara em cada evento desta natureza. Desta vez caiu completamente. Vocifera contra os políticos que cometem crimes e ficam impunes. Mas ele promove este crime e impune fica. Diz que é preciso “limpar” Portugal, mas desfila ao lado de Mário Machado, de neo-nazis, de membros de grupos que têm agido com intenção criminosa como o Habeas Corpus ou o 1143. Tira fotografias em igrejas católicas, fala da identidade cristã de Portugal e da sua devoção católica, mas promove marchas que o aproximam dos que perseguiram os primeiros cristãos, coloca-se nos antípodas de um Cristo em que diz acreditar e que tem uma história de promoção da igualdade com os estrangeiros desprezados ou de acolhimento dos que nem eram considerados cidadãos no seu tempo. Fala do respeito às forças de segurança, mas coloca-se na condição de criminoso que obriga os polícias a assistirem ao seu crime sem poderem atuar. Esta é a farsa deste partido e deste dirigente.

Tenho a sorte de residir numa zona cheia de imigrantes. Conheço-os, falo com eles, como as suas comidas, sei da sua vida. São iguais a qualquer um de nós. São, sobretudo, iguais aos milhões de portugueses que se viram obrigados a, ou simplesmente quiseram, emigrar à procura de uma vida melhor ou diferente.

Temos de fazer melhor no acolhimento de imigrantes. Temos de deixar de falar dos imigrantes como “pessoas de quem precisamos para a economia”. É indigno e utilitarista. Precisamos, porque todos precisamos de todos quando estamos comprometidos com um mundo melhor. Disse o Ministro Fernando Alexandre, e bem, que a política de imigração passa muito pela boa resposta às crianças estrangeiras, da mesma forma que a educação foi a resposta do Portugal democrático aos portugueses que, há 50 anos, não tinham qualificações, não liam, deitavam lixo para o chão e escarravam, achavam o piropo e a boca ordinária às mulheres que passavam na rua um comportamento aceitável. A democracia não virou as costas a estes portugueses e não virará as costas aos que chegam e precisam da língua portuguesa, da leitura, da ciência, que precisam de lidar com o trauma de fugir dos seus países. Somos melhores quando convivemos com a diferença, porque a homogeneidade é a ilusão dos preguiçosos e o pasto dos ditadores.

O Chega provou ser uma organização promotora de crimes. Não é uma opinião, é um confronto estrito entre o artigo 240.º do Código Penal e as palavras e atos dos seus dirigentes. A sua impunidade inquieta-me e justifica a escrita deste artigo.

A estratégia é poderosa, porque insidiosa. Nas mensagens redutoras, simplistas e falsas, vão instalando o medo nos que têm, por qualquer razão, menor capacidade crítica ou menor acesso à informação.

Apelo, pois, aos jornalistas, que militam em tantas causas políticas, aos políticos que representam os democratas e aos órgãos de soberania que não sejam cúmplices silenciosos desta impunidade.

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