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Revenge Porn no Telegram: o canal português de misoginia assistido por 70 mil homens

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Infelizmente, não é novidade nenhuma que as mulheres são muitas vezes culpadas por serem seres sexuais, enquanto os homens são vangloriados no mesmo contexto, ou desculpados mesmo quando são os predadores da história.

Ora, imaginem o que é partilhar, com consentimento, uma foto íntima, com alguém em quem confiam, e depois ver essa mesma foto a ser partilhada publicamente, sem o vosso consentimento. Imaginem o que é a sociedade culpar-vos por terem tirado e enviado aquela foto, mas não culpar quem a partilhou publicamente sem a vossa autorização. Isto acontece todos os dias e chama-se Pornô de vingança. Em Portugal, a Associação Não Partilhes tem sido muito vocal acerca deste tema.

Esta prática não acontece somente em dramas adolescentes de séries e filmes, mas na vida real, especialmente através das redes sociais. Neste contexto, os participantes da conversa não se limitam a partilhar as fotos, mas também as comentam em conjunto, avaliando o corpo das mulheres, pedindo fotos de mulheres de zonas específicas, ou mais informações sobre as mulheres em questão.

“Nem todos os homens são assim”, mas pelo menos 70 mil são, todos os dias

Foi com raiva, mas tristemente sem grande espanto, que no passado dia 23 de agosto, li a notícia que existe um canal português de Telegram que conta com 70 mil homens ativos na conversa, onde partilham pornografia de vingança todos os dias. As vítimas: as mulheres, muitas vezes ex-parceiras ou até namoradas de amigossubdivididas em categorias. Como novidade para Nithá vários canais no Telegram com o mesmo tipo de conteúdo, como é o caso de “Voyeur”, “Pussylga” e “Pussylicious”. Dentro deste últimos, os subtópicos incluem: “Trans”, “+60”, “Feia, mas até comia…”, “Tugas desconhecidas” e “Namoradas de amigos”.

“Alguns dos membros até se dão ao trabalho de “construir uma narrativa completa” sobre as vítimas, conta a mesma fonte à NiT. Mais do que publicar fotografias, íntimas ou não, partilham os links diretos para as redes sociais da pessoa em questão. E, caso a conheçam, revelam ainda outras informações pessoais.”

Depois admirem-se que, quando questionadas se preferiam ficar encurraladas numa floresta com um homem ou com um urso, um grande número de mulheres, sem qualquer hesitação, tenha escolhido o urso.

Claro que mesmo enumerando estes factos, muitos homens dizem logo “mas nem todos os homens são assim”, ao invés de valorizarem o terror que estas realidades comportam. Mas a verdade inegável é que a prática de pornografia de vingança é largamente praticada por homens e quem leva mais com o peso da culpa é quem envia consentidamente as fotos ou vídeos — as mulheres — ao invés dos homens que as partilham depois, sem consentimento. “Nem todos os homens são assim”, mas pelo menos 70 mil são, todos os dias.

Outra prática comum de resposta de macho que ‘não é como os outros’ é a frase do herói generalista: “peço desculpa em nome dos homens”. Por muito que essa abordagem possa ter uma boa intenção, esse pedido de desculpas é útil para quê? Acham que as mulheres vão fazer uma captura de ecrã, emoldurar e colocar na parede à entrada de suas casas, para que, da próxima vez que forem assediadas no trabalho, no autocarro até casa, no supermercado, ou na rua, possam chegar a casa, olhar para o quadro e pensar: “ah, pronto, já me sinto melhor, porque o @jorg_6_5 pediu desculpa em nome dos homens a semana passada”?

*Pausa para revirar os olhos*

Ao invés de debitarem palavras que em nada responsabilizam ninguém, sejam pessoas de ação. Algum amigo vosso vos envia fotos privadas de uma mulher? Chamem à atenção desse ‘amigo’ e reconsiderem os parâmetros dessa amizade. Começam a comentar convosco, ou à vossa volta, o corpo de uma mulher de forma depreciativa? Chamem à atenção, sem serem coniventes com sorrisinhos ou silêncio.

Uma foto partilhada com nudez de uma mulher pode mudar por completo a forma como a sociedade a vê, mas não muda a forma como a sociedade olha para o homem que partilhou essa foto sem consentimento. É injusto, é infeliz, é misógino, é real.

A culpa não é dela que enviou a foto. Ela confiou nele, ela enviou-lhe de forma privada. A culpa é dele que partilhou essa foto publicamente sem o consentimento dela.

Aposto que qualquer homem que regularmente partilha fotos íntimas de mulheres sem o consentimento destas, não iria gostar que outros homens partilhassem fotos da sua irmã, ou da mãe, ou da filha. E este é o argumento infalível contra a violência sexual: o da propriedade. Se fosse uma mulher que de alguma forma o sujeito considerasse propriedade sua — a sua irmã, mãe, ou filha —, ele não iria gostar que outros homens partilhassem fotos dela, comentassem depreciativamente o seu corpo, ou partilhassem informação sobre ela.

Um homem misógino só protege as mulheres que ele considera pertencer-lhe, considerando todas as outras, ou carne para canhão sexual, ou irrelevantes. Não é por acaso que neste contexto misógino se vê, muitas vezes, um homem pedir desculpa ao namorado da mulher depois de se meter com ela, quando se apercebe que “aquela já tem dono”. Esquecem-se que as mulheres nunca foram, nem são, propriedade dos homens, mesmo havendo leis que o afirmaram noutros contextos temporais ou ainda afirmam em certos contextos políticos (como já aconteceu no nosso país e como ainda acontece, por exemplo, no Afeganistão).

Quantos à lei na União Europeia sobre a partilha não consentida íntimas e assédio sexual online, o conselho da União Europeia aprovou no passado mês de maio, “uma diretiva que deverá alcancar a lei de combate” a estas situações, como refere Paula Cosme Pinto na publicação sobre a notícia da Nit. Em terreno nacional, foi aprovado um projeto de lei no ano passado, que prevê uma pena de prisão até cinco anos para os referidos crimes.

Relembro, ainda, que o fundador do Telegram, Pavel Durov, enfrenta atualmente várias acusações em relação à falta de moderação na plataforma, já que esta é usada para partilha de discurso de ódio em várias frentes, para organização de tráfico de droga, fraudes e pedofilia. Claro que, neste caso, poderíamo-nos debruçar-nos sobre a o direito à liberdade de expressão, como é mencionado no artigo do Expresso que aborda o tema. Seguindo esta linha de pensamento, deixo aqui, para concluir, a seguinte pergunta: se, no Telegram, num campo pleno de ‘liberdade de expressão’ — no entendimento tido como mais abrangente da sua definição que torna permissivo este tipo de ato criminoso —, 70 mil homens escolhem partilhar entre si fotos íntimas de mulheres, sem o consentimento destas, muitas delas ex-parceiras suas ou namoradas de amigos, o que é que isto nos diz sobre a sociedade?

Que a misoginia está bem viva, mas não se recomenda.

(É ainda importante relembrar que a partilha de imagens íntimas sem o consentimento da pessoa nas fotos é sempre incorreta, seja de que género for a pessoa nas fotos, seja de de género for a pessoa que partilha sem consentimento.)



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