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Estudantes de Medicina motivados – um bem precioso

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Rapidamente, surgiu a “perceção” de que a formação de médicos era excessiva face às necessidades do país e o número de vagas disponibilizadas pelas escolas médicas foi progressivamente reduzido até aos números drásticos de 1986. A título de exemplo, a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa admitiu em 1986 apenas 40 alunos no 1º ano (!) e as outras escolas médicas receberam números semelhantes de estudantes de medicina. Após este ano, a “perceção” foi de que se tinha caído numa correção exagerada e o número de alunos aumentou sistematicamente ao longo dos anos em todas as escolas médicas, reforçado por novas Faculdades de Medicina nas Universidades do Minho, Beira Interior, Algarve, Católica, Madeira e Açores (sendo que nestas duas só funcionam os 3 primeiros anos).

De novo, como exemplo, a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa recebeu no ano letivo 2023/24 365 novos alunos no 1º ano. Neste mesmo ano letivo as escolas médicas portuguesas receberam um total de 2065 alunos. Mas, apesar do crescimento da capacidade formativa, a “perceção” é de que continuam a faltar médicos e de que é necessário formar mais médicos. Há dados concretos de graves deficiências no número de médicos de família e medicina interna, que são pedras basilares do SNS e também insuficiências na resposta nas urgências em geral e em particular nas de obstetrícia e pediatria. Mas, por outro lado, o número de novos diplomados em Medicina em Portugal, em 2021, por 100 000 habitantes é superior à média da União Europeia (16,3 vs. 15,3) e o número de médicos, em 2021, por 1000 habitantes é também superior à média da União Europeia (5,3 vs. 4,1). Aqui há um detalhe muito relevante. O número de médicos reportado por Portugal é baseado no número de médicos registados na Ordem dos Médicos e não no número de médicos efetivamente em prática clínica, como é reportado pela maioria dos países da União Europeia. Por isso, o relatório da OCDE- State of Health in the EU | Portugal: Perfil de saúde do país 2023sugere descontar 30% no valor apresentado por Portugal, mas mesmo assim o número de médicos por 1000 habitantes fica ainda muito próximo da média da União Europeia.

Para evitarmos decisões baseadas em “perceções”, como aconteceu no passado, o Ministério da Ciência Tecnologia e Ensino Superior e o Ministério da Saúde elaboraram um Despacho conjunto que nomeou uma Comissão para estimar as necessidades formativas em Medicina em Portugal para a próxima década. Esta comissão foi formada por um conjunto eclético de elementos com conhecimentos técnicos e científicos complementares e representando várias sensibilidades do problema. Em Março de 2024 esta comissão produziu um relatório público de enorme relevância, por constituir uma apreciação das necessidades formativas em Medicina baseado em factos concretos e utilizando um método de modelação (Modelo de Oferta) para chegar a conclusões com a maior probabilidade possível de estarem perto da realidade.

O relatório recomendou 3 pontos fundamentais, 1) “manter para a próxima década um aumento (de 1 a 2%/ano) do número de vagas em Medicina em Portugal, em linha com o aumento anual que tem vindo a acontecer na última década em Portugal, bem como no contexto Europeu em que nos enquadramos”; 2) que “antes de decidir criar escolas de medicina, devem ser estrategicamente otimizadas as capacidades formativas das atuais Escolas Médicas”; 3) reforçar o “investimento nas escolas existentes” e apostar na “valorização e capacitação docente”. Estas conclusões são muito pertinentes. Vivemos uma fase complexa da saúde, na qual os médicos recém-formados não preenchem completamente a oferta de capacidades formativas das especialidades médicas, reflexo da emigração de médicos numa fase muito precoce da carreira e da decisão de seguir outras opções profissionais.

Mais tarde, noutra fase da carreira, uma parte significativa dos médicos recém especialistas não se mantém no SNS, preferindo a emigração, agora já como especialistas, ou o sector privado de saúde. Este desencanto com o SNS, com efetiva redução de médicos em várias áreas chave do SNS, é neste momento o principal fator na atual “perceção” de falta de médicos em termos absolutos em Portugal. Temos de estar conscientes deste dado, sob pena de investirmos indefinidamente na formação de médicos e de especialistas, que depois trabalharão noutros países ou constituirão a base do funcionamento do setor privado da saúde, mas não do SNS.

A formação pré-graduada (curso de medicina) e pós-graduada (especialização) de médicos é muito exigente e depende de infraestruturas adequadas e recursos humanos treinados e disponíveis. Criar uma Faculdade de Medicina de raiz é uma tarefa complexa e financeiramente pesada.

Acresce que o ensino clínico pré-graduado ocorre maioritariamente nos cuidados de saúde primários e nos hospitais do SNS, o que implica que as novas faculdades já criadas, ou em criação, vão na prática competir com as faculdades já existentes pelos recursos humanos e pelas consultas e enfermarias para as aulas práticas. Há o risco de degradação da formação médica e o problema potencial, posterior, de não conseguirmos capacidade formativas suficientes com critérios mínimos de qualidade nas várias especialidades médicas.

Para não cairmos numa situação de regressão da qualidade na medicina praticada em Portugal é necessário investir nos recursos humanos do SNS e inverter a tendência inexorável da perda de atratividade do SNS para o treino de especialistas e para a carreira futura clínica, com consequente perda progressiva de especialistas do SNS. E é fundamental suspender a política de abertura de novas escolas médicas e apostar no reforço das existentes, permitindo o aumento moderado de estudantes de medicina que se tem verificado e que é documentadamente suficiente para as necessidades futuras nacionais. Com esta estratégia conseguiremos continuar a atrair estudantes dedicados e muito motivados para abraçarem a carreira médica, como eu verifico anualmente na semana de receção aos novos alunos de medicina. Estes estudantes com esta extraordinária atitude positiva são um bem precioso que as escolas médicas e o SNS, em conjunto, têm de ter a arte de manter motivados e entusiasmados com uma carreira no SNS.

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