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Darwin no espaço

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A premissa de hoje poderá facilmente ser: se quiser investir com sucesso num mundo incerto e à beira do caos, invista na exploração do espaço. Afinal, o espaço é a nova fronteira – uma espécie de resort cósmico onde, quando a Terra inevitavelmente colapsar, poderemos todos relaxar em oásis celestiais. De facto, esta narrativa tem sido promovida por alguns magnatas espaciais, como Elon Musk e Jeff Bezos, que investiram milhares de dólares nas suas empresas e projetos de exploração e conquista de outros planetas no universo. Segundo a autora Mary-Jane Rubenstein, no seu livro Astrotopiao discurso insistente sobre a competição e a conquista do espaço tornou-se numa espécie de religião corporativa. O argumento do livro é que a intensificação desta corrida espacial é um projeto simultaneamente político, económico e científico, em que a mitologia sustenta todos estes esforços. Olhar para o espaço como um refúgio de sonhos, uma salvação para o quotidiano urbano terrestre, eleva-o a uma dimensão quase religiosa, evocando temas escatológicos da tradição cristã.

Aliás, a forma como percepcionamos o espaço mudou muito ao longo dos séculos. Nos primórdios da história, o universo era visto como sujeito e, gradualmente, foi-se transformando em objeto. Nas civilizações mais antigas, como no Antigo Egito, o espaço era encarado como uma força dominadora que controlava os assuntos na Terra, com as sociedades conformadas à ordem cósmica. A hierarquia social em si refletia e estava interligada ao cosmos, sendo muitas vezes formalizada através de arquiteturas que transmitiam simbolismos espirituais e religiosos. Contudo, essa visão desvanecer-se-ia com o Iluminismo Europeu, onde o cosmos passou a ser visto como um objeto de estudo, algo para ser controlado, gerido e utilizado para fins humanos. Esta perspetiva foi cimentada por vários cientistas e filósofos, inspirados pelos pensamentos de Francis Bacon e a sua ideia do domínio sobre a natureza.

Hoje, essa conceção reflete-se na forma como as relações das nossas sociedades com o cosmos estão a evoluir, com o espaço a emergir como um palco onde se exercem e disputam diversas forças – militares, sociais e culturais. Se outrora a corrida espacial se restringia à rivalidade entre duas superpotências, os Estados Unidos e a União Soviética, hoje assistimos à entrada de novos protagonistas, como a China, para além de outras nações, tanto europeias como de outras regiões do mundo, que almejam explorar e liderar missões espaciais.

Paralelamente, nesta corrida, assistimos à ascensão meteórica de atores não governamentais, e é precisamente sobre estes que o livro de Rubenstein se debruça, criticando a ideologia das corporações, moldada por fantasias colonialistas, consideradas perigosas, para além de eticamente e legalmente problemáticas. Este processo de privatização e comercialização do cosmos, conduzido por empresas cujos objetivos são obscuros e guiados principalmente por interesses económicos, representa uma mudança profunda na forma como a humanidade se relaciona com o espaço. Em vez de ser visto como um bem comum, um domínio de exploração científica e de cooperação global, o espaço está gradualmente a transformar-se numa joint-venture capitalista.

Neste verão, a empresa francesa Look Up Space contabilizou mais de 10.000 satélites ativos em órbita da Terra, dos quais mais de 7.000 são satélites Starlink, pertencentes à SpaceX, empresa criada por Elon Musk. Inevitavelmente, este número está a aumentar a um ritmo vertiginoso, levantando “pequenas” questões sobre a gestão do espaço e os seus possíveis impactos ambientais. Afinal, o que são algumas colisões no espaço entre amigos? Só contribuem para a crescente coleção de “lixo espacial”, esse preocupante problema que poderá, quem sabe, comprometer futuras missões espaciais e até cortar serviços cruciais no nosso dia-a-dia. E como se isso não fosse o suficiente, este aumento de satélites comerciais também vem com o bónus adicional de desafiar as frágeis tentativas de regulação internacional. E o melhor de tudo? Tantos satélites nas mãos de uma única empresa. O que poderia correr mal com a monopolização do espaço e o controlo de infraestruturas essenciais por corporações privadas?

Astrotopiaa autora questiona se devemos explorar o espaço, mas, na verdade, a exploração do cosmos já está em curso. A ideia de Darwin no espaço soa quase poética, como se a evolução e a seleção natural estivessem agora a expandir-se para além do nosso planeta, qual saga intergaláctica. Todavia, esta expansão darwiniana pode ser vista na corrida capitalista ao espaço, onde a competição corporativa domina e a exploração torna-se uma extensão dessa luta pelo poder. Assim como na natureza, as empresas mais fortes prevalecem, replicando um processo de seleção em escala interplanetária. A exploração do espaço, em vez de uma jornada coletiva, acaba por refletir as mesmas lógicas de poder e lucro que perpetuam as desigualdades na Terra. Longe de ser apenas uma nova aventura de ficção científica, a exploração espacial oferece desafios e oportunidades para entendermos como a vida pode adaptar-se a condições extremas.

Em vez de seguir interesses corporativos e geopolíticos, a exploração espacial deveria focar-se nas nossas responsabilidades coletivas, garantindo que os ganhos beneficiem a humanidade. Se a mineração de asteroides se tornasse viável, os recursos poderiam ser usados para desenvolver tecnologias sustentáveis e combater crises globais, como as alterações climáticas e a desigualdade económica, em vez de serem monopolizados por potências ou empresas.

Por mais emocionante que seja a ideia de escapar para Marte, onde podemos viver em bolhas herméticas enquanto evitamos tempestades de poeira radioativa, ou de construir cidades flutuantes em Saturno, ainda estamos presos neste pálido ponto azul.

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